30/12/2010

Os melhores contos do Padre Brown, de G. K. Chesterton

Lisboa: Assírio e Alvim, 2010 (1911-1936), 240 pp., 16,00€

O Padre Brown é um detective na linha inaugurada por Sir Arthur Conan Doyle e o seu famoso Sherlock Holmes, e depois seguida por Agatha Christie e os seus Miss Marple, Hercules Poirot e o casal Tupence. Com uma grande diferença: enquanto todos os outros partem duma ideia racionalista das capacidades da mente humana para resolver os enigmas da realidade, Brown confia muito mais na sua observação e na sua intuição humana.

Paradoxalmente, os Contos de Chesterton concedem ao leitor muitos mais elementos para poder resolver os crimes e delitos apresentados durante a leitura. Mas, na sua resolução, quem gostar de Doyle ou de Christie vai de certeza adorar a genialidade de Chesterton.

É difícil que uma Antologia consiga pôr de acordo àqueles já leram a Obra que a seguir se tenta «resumir». No caso de uma colecção de Contos, o problema é mais fácil, porque à partida a escolha é feita a partir de narrações autónomas. Ainda assim, neste caso não acontece bem isto, porque todos os Contos do Padre Brown, que apareceram em cinco volumes de uma dezena cada um, têm muitos elementos comuns e de continuidade, que uma Antologia sempre deturpa.

Por isso, se por casa tiver uma outra colecção qualquer destes Contos, não hesite em começar por qualquer outro ponto, que poderá ser tão bom como começar por esta edição.

21/12/2010

Bella, de Alejandro Gómez Monteverde (2006)

Sem grandes interpretações e sem alguns dos clássicos elementos do cinema de Holywood, Bella é um belíssimo filme sobre a vida e sobre a possibilidade de redenção nesta vida.

Sobre tudo, não é um ingénuo filme pro-life sem mais. Apesar de que nele esteja presente a temática do aborto, é só marginalmente, porque o coração da história é a mudança de duas vidas. A partir de um encontro circunstancial entre uma mulher desesperada e um homem ainda mais desesperado, serão um para o outro um início de resposta. Se ela acabou de perder o emprego, ao mesmo tempo que descobriu uma gravidez indesejada, ele está só a tentar adaptar-se ao mundo depois de quatro anos de cadeia que quebraram a sua carreira como futebolista de sucesso. Na tentativa de se acompanharem nesse momento, uma família mexicana vem mostrar um caminho de esperança para ambos.

As músicas estão muito bem escolhidas, assim como a montagem e o crescendo dramático, em flash-back e flash-forward. E, sem um final forçadamente feliz, acaba por ser um bel filme esperançador.

15/12/2010

Eu não tenho medo (Io non ho paura), de Nicolò Ammaniti

Lisboa: Dom Quixote, 2003 (2001), pp. 192, 13,00€

«Quando era criança sonhava com frequência com monstros (…) e conseguia enganá-los». É Michele quem assim fala, uma criança de nove anos que vive no Sul da Itália e que, apesar de descobrir o mal nos adultos que o rodeiam, não tem medo nem desses adultos nem do próprio mal.

O sucesso do romance está numa narração muito bem construída, com uma tensão dramática crescente, e numa ambientação sensacional no calor estivo italiano. Mas o seu fascínio vem de dois aspectos muito sugestivos: a amizade entre crianças e o desejo de vencer o mal com o bem.

Num passeio de bicicleta, Michele encontra por acaso um buraco numa casa em ruínas, onde uma outra criança, Filippo, está presa. Não morta, como ele pensa inicialmente, mas sim esfomeada e presa por grilhões e sequestradores. «Tu e eu somos iguais», chegarão a dizer, nesta promitente ajuda que Michele oferece.

O drama cresce quando Michele descobre que são o próprio pai dele e seus amigos os protagonistas do sequestro. Mas não está disposto a ceder no seu propósito e, numa heróica cena final, demonstra não ter medo. Aliás, demonstra que nós nunca devemos ter medo.

10/12/2010

A estranha vida de Nobody Owens (The graveyard book), de Neil Gaiman

Lisboa: Presença, 2010 (2008), pp. 304, 13,00€

De facto, é uma vida estranha aquela duma criança encontrada num cemitério por um casal falecido algum século atrás. Nobody, a personagem principal do romance, é um «Ninguém», porque os seus pais e irmã foram mortos nas primeiras páginas do livro e passou a viver num cemitério, junto das personagens mais rebuscadas das várias gerações de homens e mulheres lá sepultados.

Como quase todos os romances de Gaiman, explora-se assim uma fronteira entre o mundo tal e como o conhecemos e outros mundos, em parte fantásticos e em parte muito mais reais do que as aparências do nosso dia-a-dia. A riqueza do sentido do mistério que rodeia esta história não é só sugestiva: remete para o modo de conceber a realidade, o mundo, a vida e a morte.

Talvez seja este o aspecto mais intrigante, misterioso e belo: a relação entre vida e morte que o romance problematiza. Nobody é humano e por isso cresce e desenvolve as suas capacidades, ao passo que o resto das personagens do cemitério ficam eternamente com a mesma idade e qualidades. Sem grandes filosofias ou metafísicas, o romance leva-nos por mundos que pareciam inexistentes.

30/11/2010

Peer Gynt, de Edvard Grieg (1876)

A extraordinária história de Peer Gynt é narrada numa peça teatral do premiado Ibsen, para a qual Grieg criou uma série de músicas de cena, que mais tarde viria a elaborar na forma de duas suites, de quatro trechos cada uma.

Vale a pena ouvi-las, ao passo que se conhece a história a que se referem, que pode ser assim resumida:

Peer Gynt é um jovem caçador que recebe de sua mãe Aase a notícia do casamento de Ingrid, a rapariga mais bela da aldeia. De caminho para impedir as núpcias, encontra uma outra rapariga, Solveig, com quem dança e de quem se apaixona, esquecendo Ingrid momentaneamente. Mas, ao toque dos sinos, lembra-se de Ingrid e dirige-se à Igreja, impede o casamento e fuge com a noiva, mas só dois dias depois irá deixá-la, já cansado dela.

De novo, um toque de sinos, desta vez fúnebre, fá-lo regressar. Apercebe-se que a mãe, Aase, está prestes a morrer. Ao cuidado dela está Solveig, que lhe promete ficar à sua espera para sempre, uma vez que Peer se vê forçado a fugir da justiça pelo rapto de Ingrid.

Em Marrocos, onde foge, torna-se rico e casa com uma mulher árabe, que mais tarde lhe irá roubar todos os seus bens e, quando se vê idoso, pobre e falhado, decide regressar à sua aldeia.

Na velha cabana, ouve alguém a cantar e vê o nome dele escrito na névoa dum vidro. Solveig está à sua espera, como prometera, e a sua vida é abraçada e amada acima dos seus erros e falhanços.

17/11/2010

O demónio (The Devil)

Drew e John E. Dowdle, 2010

Night Shyamalam é conhecido por filmes como A vila, O Sexto Sentido ou Signs. Não esconde a sua ligação com Alfred Hitchcock, e como este tem por hábito aparecer como figurante em todos os seus filmes, e sobre tudo criar situações de suspense que levam ao limite a tensão narrativa.

Desta mente genial, nasce um thriller classificado como «sobrenatural». A pesar da mentalidade racionalista que pretende banir certas noções como esta, é com grande naturalidade que Shyamalam mostra nas suas criações como o mistério e a maravilha fazem parte do nosso mundo: o que é aparentemente inexplicável, na realidade, é a força que domina o nosso dia-a-dia.

O trailer deste filme anuncia: «Em qualquer dia normal, as nossas vidas estão cheias de encontros fortuitos e de acontecimentos aleatórios, mas hoje tudo se passa por uma razão». Assim, cinco pessoas, que não se conhecem e que ficam presas num elevador (aparentemente) por acaso, serão confrontadas com escolhas radicais e terão de enfrentar aquilo que realmente são.

Tecendo esta história, um narrador introduz-nos num conto tradicional, que dá o seu sentido mais profundo e que nos deixa, uma vez que recuperamos o fôlego da acelerada narração, muito para pensar. Com uma mensagem de esperança: a fe e o perdão são capazes de vencer o mal.

09/11/2010

A festa de Babette (Babettes gæstebud)

Gabriel Axel (1987)

Tantas vezes ouvimos quem diga: «se eu ganhasse os Euromilhões, mudava vida: fazia tal e tal...». Pois bem, o centro a história deste filme é o que a sua protagonista vai fazer com um bilhete de loteria premiado: ficar exactamente onde está e como está, só que ainda mais empenhada nas suas circunstâncias do que antes.

O contexto é uma aldeia minúscula da Jutlândia, onde duas irmãs luteranas comprometidas na actividade caritativa promovem uma seita fundada pelo defunto pai: uma comunidade cada vez mais reduzida e envelhecida. Em contraste, vários homens que as cortejam, sem sucesso, e a «papista» Babette, personagens que introduzem uma vida diferente nessa comunidade.

A festa que Babette organiza é um manjar, onde essas posições virão à tona: o moralismo e a frustração, baseados numa recordação piedosa do defunto fundador; frente ao gosto da vida nas coisas singelas, no aproveitamento dos talentos que o próprio Deus deu ao criar cada homem e mulher.

A ironia do filme é genial, e assegura algumas gargalhadas, para além dum tom geral bem disposto.

02/11/2010

Grandes esperanças (Great expectations)

Alfonso Cuarón (1998)

Qual é o peso da herança na vida duma pessoa? Quer em termos economicos, quer em termos humanos, a pergunta é de difícil resposta.

Na história de Finn Bell, jovem pescador da Florida, as suas heranças são várias, mas não parece que lhe irão trazer as «grandes esperanças» que prometeram. Por uma parte, terá a oportunidade de passar o seu tempo com a menina mais rica do lugar, da qual se apaixona, mas a mãe dela, abandonada no dia do seu casamento, vai empenhar-se em que o coração deste jovem se parta. Por outra parte, receberá dum anónimo benfeitor grandes quantidades de dinheiro e a possibilidade de expor as suas pinturas numa galeria de Nova Iorque.

Cresce a ambição, herdada dos seus misteriosos benfeitores, e um certo sucesso aparente; mas perde-se a sua humanidade, aquilo que é genuino.

Com banda sonora de Patrick Doyle, chamativo vestuário constantemente verde e interpretações excelentes de Ethan Hawke e Gwyneth Paltrow no apogeu das suas carreiras, resulta bem esta adaptação muito livre do homômino romance de Dickens.

07/05/2010

Joseph Ratzinger, Bento XVI (1927-)

Este «idoso» move e comove milhões de pessoas de todo o mundo, apesar de toda a oposição que lhe fazem a mentalidade dominante e os meios de comunicação social. Só por isto, é já um homem que «vive intensamente».

Mas a grandeza deste homem (e do que representa) é a sua incansável insistência em permanecer firme às suas convicções, que o tornam quase que cada vez mais jovem na proposta das mesmas.

A sua biografia é simples: nasceu na Alemanha, tornou-se padre aos 24 anos, foi feito arcebispo e cardeal aos 50, pouco depois foi trabalhar a Roma e foi eleito Papa em 2005. Entretanto, escreveu uns 100 livros e 600 artigos especializados, hoje traduzidos em todas as línguas.

Teremos a ocasião de o encontrar em Portugal de 11 a 14 de Maio. O que é que nos dirá?

29/04/2010

As razões de Bento XVI, de Aura Miguel

Lisboa: Texto, 2010, pp. 93, 9,00€

A única vaticanista que viaja com o Papa publica uma sintética biografia de Bento XVI, onde quase não se fala de Joseph Ratzinger (o «velho eu» do actual Papa): as suas linhas de pensamento, os episódios públicos mais simpáticos da sua vida, o seu dia-a-dia como Papa.

Alguns capítulos são praticamente resumos e citações de suas homilias e discursos, pelo que temos uma síntese extraordinária de cinco anos de pontificado. E é preciso reconhecer que esses textos estão muito bem escolhidos e apresentados, tornando a leitura fascinante e despertando a curiosidade do que vem a seguir.

O título e a capa não são talvez o melhor que se podia fazer, e pelo formato parece um livro pequeno; mas a letra é também pequena e os conteúdos são muito maiores do que a aparência.

Para quem é católico e para quem não é; para quem já conhece alguma coisa e para quem não conhece nada; para quem já gosta de Bento XVI e para quem acha que não gosta. Vale a pena.

18/04/2010

Gimnopédies, de Erik Satie (1888)

O compositor francês Erik Satie (1866-1925) é talvez mais conhecido pelo seu ser excêntrico do que pelas suas extraordinárias composições.

Com efeito, Satie não se cataloga muito bem entre os compositores impressionistas do final do século XIX, e provavelmente é precursor dos também franceses Ravel ou Debussy, ou até dos minimalistas contemporâneos. Fundou a sua própria igreja, coleccionava artigos iguais e com pouco interesse, dava às suas músicas títulos absurdos.

Gymnopaedia era uma dança celebrativa em honra do deus Apolo, onde os homens de todas as idades dançavam sem armas. Assim, estas três composições que levam este nome podem entender-se como estruturas musicais «desarmadas» de ornamento, simples e circulares.

A sua beleza envolve um certo misticismo, um certo sentimento de saudade e uma profundidade de emoções dignos de se experimentar.

09/04/2010

Sabeduria dum pobre (Sagesse d'un pauvre), de Eloi Leclerc

Braga: Editorial Franciscana, 2009 (1963), pp. 143, 5,25€

Neste romance, conta-se a história dum homem que perde a sua confiança em Deus e nos homens. Aparentemente desiludido com alguns falhanços, isola-se do mundo e até dos seus amigos.

O pormenor, não secundário, é que este homem é são Francisco de Assis. O santo que sempre imaginamos alegre, triunfante no seu desafio à própria família burguesa e à sociedade do seu tempo, seguido por milhares de jovens em poucos anos, sofre esta crise.

É uma crise que toda a gente vive, mais tarde ou mais cedo, nalgum momento da existência. Por isso, é fácil encontrar nesta narração um espelho de preocupações, tentações e caminhos pelos quais todos passámos. O conhecimento da alma do seu autor, o franciscano Leclerc, permite-lhe fazer descrições psicológicas belas e profundas.

A simplicidade da escrita e da narração é, sim, aquilo que imaginamos no grande são Francisco.

04/04/2010

Tudo o que você queria ouvir, dos GNR (1996/2006)

Em 1996 foram dois discos, e em 2006 completaram-se com um «terceiro volume», esta selecção de sucessos chamada «O melhor dos GNR».

Estas músicas levam-nos desde as Dunas («são como divãs / biombos indiscretos de alcatrão sujo») até Ana Lee («se ela se põe de vestidinha / parece logo uma princesinha / num trono de jasmim»); e incluem Mais vale nunca («nunca mais saber / mais vale nunca, nunca mais crescer») ou Quero que tudo vá para o inferno.

Não dizem grande coisa, não são letras particularmente poéticas ou esteticamente inovadoras, mas fazem parte duma «tradição», dum «património», que encantou uma geração ou duas, em parte pela voz do seu vocalista, Rui Reininho, em parte pelo ritmo descontraído e a descrição geralmente positiva das suas personagens e paisagens.

Em absoluto, podem não ser os mais intensos; mas, comparativamente, são do melhor.

30/03/2010

Um lugar para viver (Away we go)

Sam Mendes (2009)

Sam Mendes, controverso realizador de filmes como American Beauty ou Revolutionary Road, caracteriza-se principalmente por oferecer uma perspicaz e inteligente crítica à sociedade burguesa contemporânea (americana, mas, como diz ironicamente uma personagem: «se a América é assim, como serão as moscas à volta dela?»). Falta-lhe sempre, porém, uma proposta alternativa. Diante deste panorama, o que fazer?

Neste filme, temos um casal amoroso à espera do seu primeiro filho, aos 34 anos: Burt Farlander and Verona. Quando descobrem que os avós estão a pensar em mudar de continente para os próximos anos, decidem eles também mudar de cidade, à procura dum «lugar para viver», dum «lar». Esta viagem pelos velhos amigos e familiares do casal permite-nos realizar uma viagem cheia de estereótipos da família americana (um casal com cinco crianças multi-étnicas adoptadas, um casal new-age que não usa carrinhos de bebé para não puxar as crianças para longe dos pais, e ainda outras experiências mais desagradáveis).

Com grande sentido do humorismo, por vezes cínico e por vezes até amargo, o senso do surreal provoca gargalhadas, que num segundo momento levam a reflectir: quase que os falhados Farlander parecem os mais normais dentro desta espécie de jardim zoológico humano. E, assim, no fundo, esta crítica social não é destrutiva, mas positiva (em particular, na cena dos compromissos que substituem o casamento que nunca se realiza). No fundo, saímos do cinema a pensar e a sorrir.

20/03/2010

Requiem a 5 vozes, de Cristóbal de Morales (1544)

A polifonia espanhola do Renascimento associa-se naturalmente a Tomás Luís de Victória e talvez aos seus famosos Responsorios. Neste mesmo género musical trabalharam também Francisco Guerrero e Cristóbal de Morales.

Morales nasceu em 1500 e foi maestro de capela nas Catedrais de Ávila, Plasência, Sevilha, Toledo e Málaga. Durante 10 anos fez também parte do Coro Papal de Roma, onde cantou diante de todos os monarcas europeus na Capela Sixtina que Miguel Ângelo tinha acabado de pintar em 1512.

Neste contexto de beleza, de grandes catedrais, esplendor artístico e profunda fe pré-Reformada, Morales revoluciona o gregoriano com a repetição do mesmo texto em diferentes ritmos, naquilo que se conhece por «polifonia», isto é, o desenvolvimento de várias vozes, que preservam um caráter melódico e rítmico individualizado.

Esta Missa de Requiem a cinco vozes é magistral neste exploit de beleza, ecos e ressonâncias. Em particular, o Gradual «lucet» com especial brilho, assim como a tecnicamente dificílima Sequencia.

11/03/2010

Joan Baez (1941- )

Ao contrário do habitual, o tema desta sugestão é uma pessoa e a sua carreira em geral. Talvez por ter tido a sorte de presenciar o seu concerto no Coliseu de Lisboa, estou convencido de que não é uma ou outra música, um ou outro disco, que faziam justiça ao que Joan Baez é, representa e simboliza.

O seu percurso pessoal levou-a, numa infância entre Nova Iorque e Califórnia, a ouvir os discursos sobre os Direitos Civis de Martin Luther King Jr., a comprar a primeira viola com 15 anos e a a conhecer um discípulo de Ghandi, que se tornará seu principal referente político. São as belíssimas histórias que conta e identifica nas suas músicas.

Assim, misturando a beleza de músicas inesquecíveis (folk, populares e tradicionais, versões de Dylan, Cohen, Parra e outros) com um grito de libertação (americano, e portanto, como ela própria disse, com conotações quer de esquerda quer de direita), a sua pessoa é um marco dos últimos 50 anos da história da música, e não só.

Encarna um grito que está presente no coração de cada homem: «how many years can some people exist / before they're allowed to be free», «may you stay forever young», «gracias a la vida»...

08/03/2010

Slumdog millionaire

Danny Boyle (2008)

Este filme foi tão famoso e premiado que só é aqui proposto no caso em que a alguém tenha passado a oportunidade de o ver. Porque vale a pena.

O centro da história é evidente: no concurso televisivo «Quem quer ser milionário?», um jovem da Bombaim pobre ganha o maior prémio da história. «Como é que ele, Jamaal, sabe todas as respostas?», é a pergunta com que o espectador é confrontado. E tem, como no concurso, quatro opções: (a) Sabe as respostas; (b) Faz batota; (c) É a sua sorte; (d) Está escrito.

Numa história que combina, portanto, inteligência, perspicácia, destino, desejos de grandeza, e um certo romantismo, encontramos grandes interpretações, uma excelente ambientação, um ritmo narrativo muito bem elaborado e a companhia duma boa banda sonora.

Em resumo, todo o contrário da carreira cinematográfica deste realizador.

24/02/2010

Clair de lune, de Claude Debussy (1890)

Ouvir «Só a Beleza pode mudar o coração do homem. Na Quaresma é-nos pedido que nos deixemos comover pela presença de Aquele que é a Beleza, a Verdade e a Bondade. Não se trata de um exercício de New Age, procurar uma qualquer paz interior ou harmonia com o cosmos... mas de reconhecê-lo presente e reconhecer o seu abraço à nossa vida.

A delicada música do «Luar» da Suite Bergamasque de Debussy é uma obra da sua juventude, que ele tentou não publicar, dado que a considerava uma obra imatura.

A peça já não soa como deveu soar lá quando foi composta, momento em que quebrava laços com a harmonia tradicional, deixando de ligar dois ou mais sons simultâneos, e inventando novas formas neste ramo da música. Junto com alguns efeitos obtidos com os pedais do piano torna esta música etérea, vaporosa, onírica e ao mesmo tempo duma beleza indiscutível.

Debussy enquadra-se na corrente do impressionismo francês de finais do século XIX e princípios do XX, do qual a peça é um genial exemplo.

(Comentário por Ángel Cebolla)

18/02/2010

Um homem sério (A serious man)

Joel e Ethan Cohen (2009)

Talvez seja o filme mais cínico dos últimos tempos. Politicamente incorrecto, anti-semita e, no fundo, absurdo, é um filme que só se pode ver considerando estas premissas. Não certamente pela sua mensagem.

Dito isto, um espectador inteligente poderá rir às gargalhadas se souber captar o humorismo cáustico dos realizadores Cohen. Se for capaz de suspender as categorias naturais da sua razão, a falta de relação causa-efeito dos eventos apresentados produzirá sem dúvida um divertimento singular.

Fazendo troça do «discurso religioso», o filme põe em evidência que não é pelas fórmulas ou pelas palavras que uma experiência se torna verdadeira. Mas, insisto, não é pelos seus temas que o filme se deixa ver, mas sim pela hilariante sucessão de sem sentidos, levada até limites insuspeitos.

16/02/2010

A ponte de San Luis Rey (The bridge of San Luis Rey), de Thornton Wilder

Lisboa: Difel, 1990 (1927), pp. 120, 6,00€

Uma ponte de cordas parte-se numa colónia espanhola do Perú, no dia 20 de Julho de 1714. Cinco pessoas que a atravessavam morrem. Frei Junípero, frade franciscano italiano em missão, coloca uma questão intemporal: «Porque aqueles cinco?»

Thornton Wilder (1897-1975), aclamado novelista e dramaturgo americano, ganhou um Pulitzer por este romance, para além de outros dois por peças teatrais. Porque essa pergunta que coloca surge diante de qualquer tragédia, natural ou de ordem humana, por pequena que seja.

«Há uma direcção ou significado na vida para além da vontade do indivíduo?», questiona uma personagem. A esta pergunta tenta responder o romance, que decorre desde uma primeira parte titulada: «Talvez um acidente», até à quinta titulada: «Talvez uma intenção».

Este «talvez» declina-se na investigação sobre as vidas daqueles cinco: uma Marquesa e a sua criada, um de dois irmãos gémeos, um homem de letras reformado e o filho duma actriz famosa. Ao leitor, a última tomada de posição diante dos factos.

06/02/2010

Guernica, de Pablo Picasso (1937)

Guernica, no País Basco, conta hoje com uns 18 mil habitantes e é uma comum cidade dessa região espanhola. Mas a sua fama deve-se principalmente a este quadro de Picasso, que a imortalizou, interpretando nele os horrores da Guerra Civil Espanhola.

De facto, Guernica foi bombardeada durante essa guerra, por parte dos alemães da Legião Cóndor, curiosamente em desobediência ao mando militar franquista do Geral Mola. Contaram-se nessa acção bélica 120 mortos, segundo a investigação consolidada de J. Salas, contra a propaganda das esquerdas liderada por Preston ou Blanco, que «mataram» em Guernica entre 1.500 e 1.700 pessoas.

Picasso, simpatizante da República e antifranquista, representa neste impressionante painel a preto e branco um episodio simbolicamente catastrófico para a sua causa, embora não dos mais terríveis. As figuras desfeitas, os gritos surdos e a dor, porém, são ambiguamente contrapostas a uma luz que deixa entrever a esperança última que sempre guia ao artista sincero.

A obra pode ser contemplada no Museu de Arte Contemporânea Rainha Sofia em Madrid. Pelas suas enormes dimensões e características artísticas, a seguir ao Prado é um must numa visita à capital espanhola.

28/01/2010

As dez figuras negras (Ten little niggers), de Agatha Christie

Lisboa: Asa, 2003 (1939), pp. 192, 10,00€

Quase não precisa apresentação uma escritora tão popular como Agatha Christie. Provavelmente todos os meus leitores terão lido algum dos seus romances ou visto algum dos filmes inspirados neles.

Pela primeira vez sem Hercules Poirot ou Miss Marple, ou qualquer outro detective, As dez figuras negras é talvez a história mais engenhosa e intrigante da Autora. Não há nenhuma personagem a descobrir o difícil desenvolvimento da tragédia: numa ilha incomunicada, dez pessoas acusadas de assassinatos e nunca condenadas são mortas uma a uma. O assassino deve ser um deles, e é o próprio leitor que elabora as suas suspeitas, sempre frustradas pelo capítulo seguinte.

Ao contrário de muitos outros thrillers, a tensão deste romance cresce com o desenrolar da história, e as últimas páginas parece que nunca mais nos dão a resposta que esperamos.

É claro que não podemos pedir mais do que isto a uma escritora popular como Agatha Christie, mas é algo diferente dos habituais best-sellers americanos do quiosque do aeroporto.

18/01/2010

Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?, de António Lobo Antunes

Lisboa: Leya, 2009, pp. 375, 18,00€

Deixando de lado as recensões e críticas a esta obra para quem goste de erudição, para o leitor comum este livro propõe um mergulho numa experiência de vida. Não é imediato compreender como isto acontece, mas basta deixar-se levar, sem essa pretensão. Um pouco como dizia John Keats em relação à poesia: é como mergulhar num lago, sem a preocupação de chegar à beira.

De facto, a escrita de António Lobo Antunes é provavelmente a mais genial que exista neste momento em língua portuguesa. E, se no princípio custa um pouco sair da gramática e pontuação habituais, depois de algumas páginas perguntamo-nos como será aborrecido e já sabido ler no estilo tradicional...

A sua força e a sua debilidade é ser um romance sem história (sem plot, na terminologia inglesa): personagens congelados em fotografias que reúnem passado, presente e futuro; ambientes facilmente reconhecíveis; a beleza e o sofrimento ligados aos mais comuns sentimentos humanos. «Talvez fosse a que perseguimos desde sempre e estava ali à mercê, se torna ela mesma os passos e as vozes, afinal recuerámo-la», esta experiência vital: «são pessoas, episódios, lembranças, o sótão poeirento que compõe uma existência» (p. 356).

16/01/2010

A estrada (The road)

John Hillcoat (2009)

Já comentada na sua versão literária, de autoria de Cormac McCarthy (ler), a versão cinematográfica de A estrada deixa uma impressão muito semelhante a quem se abeira dela.

Num ritmo trepidante e cheio de efeitos visuais e sonoros próprios do thriller, esta versão é também um elogio poético à fotografia cuidada e precisa, aos diálogos tendencialmente fiéis ao texto e à música bem escolhida.

Obviamente, um filme é sempre mais explícito do que um texto literário, e por isso confirma-se o habitual lugar comum: perde-se alguma parte do mistério e do fascínio ao ver o que no livro só podemos imaginar. Mas não é este o único limite da longametragem: também observamos um ênfase no aspecto mais sentimental da narração e uma perda da crueza a que McCarthy nos tem habituados.

Ainda assim, vale a pena destacar as óptimas interpretações e a fidelidade no conjunto a uma história fascinante, de conteúdos muito positivos e de humanidade invulgar.

02/01/2010

António Vivaldi, Concerto para quatro violinos (1716)

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A arte é a maneira do homem expressar a beleza e, como dizia São Tomás, a beleza é splendor veritatis (o esplendor da verdade). Por isso tudo o que é belo remite a Deus, pois essa beleza é reflexo da sua Beleza.

Esta música de António Lúcio Vivaldi foi curiosamente copiada a um outro autor: nem mais nem menos do que o grande Johannes Sebastian Bach. Na altura, ninguém ficava aborrecido, nem recebia taxas pelos seus discos, ainda que se tratasse de obras mestres.

O Concerto para quatro violinos de Vivaldi foi composto por Bach para claves, para que fosse tocado pelos quatro filhos músicos que teve. Lembremos que ele teve 21 filhos! Impressiona o facto de Vivaldi nunca ter ouvido falar de Bach ou da sua obra, mas copiou e reelaborou a sua música, porque reconheceu nela a sua qualidade. (Comentário por Ángel Cebolla)