23/11/2008

Rebecca

Alfred Hitchcock, 1940

Um fantasma obscura a mais romântica paixão dos fabulosos Joan Fontaine e Laurence Olivier ao chegar à mansão de Manderley: trata-se da primeira esposa dele, Rebeca, falecida em circunstâncias trágicas. O suspense está criado, e a tensão vai crescendo a medida que este fantasma invade mais e mais a vida desta débil femme fatale.

Por vezes, um filme antigo é o melhor investimento para assegurar duas horas bem passadas. E com Hitchcock temos a certeza de não nos enganar. Em particular, esta fantástica criação (tão válida como o romance homónimo de Daphne du Maurier) tem o mérito de ser uma história construída num crescendo que não pode não arrepiar. Por não falar das reviravoltas típicas do cinema deste britânico implacável. Foi o primeiro filme holiwoodiano de Hitchcock e recebeu vários prémios.

Tematicamente, destacam-se dois lugares de interesse. Em primeiro lugar, o desenrolar-se duma suspeita, que bloqueia a relação natural com a realidade: a inocência feliz do casal perde-se quando os malvados empregados da residência introduzem a desconfiança. Esse «pecado» será irreversível: aquela inocência, uma vez perdida, já não se poderá recuperar. Em segundo lugar, um tema caro a Hitchcock é a luta entre o bem e o mal, neste caso dificilmente distintos numa encruzilhada onde as personagens parecem não encaixar-se. Mas o bem acaba por vencer... quase sempre.

17/11/2008

Um bom homem é difícil de encontrar (A good man is hard to find), de Flannery O'Connor

Lisboa: Cavalo de ferro, 2006 (1957), 235 pp., 13,5€

Poderíamos dizer o mesmo dum bom livro: nem sempre é fácil de encontrar. Mas quem procura tem mais probabilidades de o encontrar.

Seria um bom lema para as personagens dos 10 contos recolhidos nesta colecção, primeira de dois séries publicadas recentemente em língua portuguesa. Há algumas que não procuram nada, que calculam os benefícios e prejuízos de cada evento, que já sabem. Há algumas ainda piores: proclamam-se inclusivamente crentes (como a Autora católica), acreditam na bondade do género humano, têm uma fé sem fundamentos, mas qualquer imprevisto lhes tira do sério.

E imprevistos há mesmo muitos nos contos de Flannery O'Connor. Nunca o leitor sabe o que se vai passar, ou então, quando se vai lendo e conhecendo o seu estilo, nunca o leitor deseja o temido final que pressente que ela está a preparar. Por vezes cruel no seu humorismo, quase à la Quentin Tarantino, não deixa de arrancar um sorriso e de fazer pensar mais do que parecia a primeira vista.

«Teria sido uma boa mulher», diz uma das personagens logo a seguir ao assassínio dessa mesma mulher, «se tivese estado lá alguém para a matar em cada minuto da vida dela». Com certeza, os leitores encontarão nesta leitura incentivos para não merecer ser mortos.

11/11/2008

A Gramática do Assentimento, de John H. Newman

Lisboa: Assírio e Alvim, 2005 (1865), 472 pp., 26€

O incipit deste livro é uma frase de Santo Ambrósio que diz: «Non in dialectica complacuit Deo salvum facere populum suum», isto é: «Não aprouve a Deus salvar o seu povo com a dialéctica».

Newman converteu-se do Anglicanismo ao Catolicismo, e será proximamente proclamado beato pelo Papa Bento XVI. Mas não foi por uma dialéctica: foi como a planta que desenvolve aquilo que já estava presente desde o princípio. A conversão, de facto, não é outra coisa que descobrir de maneira mais profunda e verdadeira aquilo em que já se acreditava. Por isso, Newman fala da sua conversão como assentimento àquilo em que desde sempre ele próprio acreditou.

Newman teria negado que a sua conversão fosse sinal de santidade. A este respeito escreveu: «Não tenho a tendência a ser santo – é uma coisa triste dizê-lo. Os santos não são homens de letras, não amam os clássicos, não escrevem histórias».

Dele disse o ainda Cardeal Ratzinger: «Newman expôs na ideia do desenvolvimento a própria experiência pessoal de uma conversão jamais concluída, e assim ofereceu-nos a interpretação não só do caminho da doutrina cristã, mas também da vida cristã. Newman pertence deveras aos grandes doutores da Igreja, porque ele toca ao mesmo tempo o nosso coração e ilumina o nosso pensamento».

02/11/2008

Gabriel Fauré, Requiem (1890)

«Tal e como é único o Ave verum corpus de Mozart, assim o Pie Jesu de Fauré», disse um famoso compositor do século passado, Sant-Säens. De facto, há uma força extraordinária nas suas singelas palavras: Pie Jesu Domine, dona eis requiem, requiem sempiternam, repetidas insistentemente por uma voz soprano cheia de ternura e compaixão.

O Requiem é uma oração: trata-se das partes cantadas duma Missa (em rito latino) pelo descanso eterno dum defunto. «Jesus piedoso, dá-lhe o descanso, o descanso eterno».

Mas esta forma de oração composta por Fauré tem uma ternura única, tem uma simplicidade que nos aproxima dum Céu desejável. Não é, sem dúvida, o terrível julgamento de Mozartiana memória; mas também não é nebuloso ou arcádico. Pelo contrário, o Céu que este Requiem apresenta é melódico, cheio de vida, e ao mesmo tempo solene e pacificante.

Pode-se ouvir ao vivo na Igreja de São Roque, no próximo Sábado 8 de Novembro, junto com uma outra peça de interessante qualidade: In paradisum, do compositor Carrapatoso, que alguns dizem ser o maior compositor português vivo.