18/03/2011

Somewhere (Algures)

Sofia Coppola, 2010

Um esplêndido Ferrari 360 Modena preto repete um percurso no asfalto, no silêncio duma paisagem árida só quebrado pelo seu motor. O plano parece desenquadrado: vemos só parte deste recorrido e não temos outros elementos que o caracterizem. Mas, num certo momento, o Ferrari pára e saindo o seu motorista, Johnny Marco, formam um plano tão perfeito que parece um postal ou uma fotografia de Prémio Pulitzer.

Estes três primeiros minutos de filme descrevem bem o que nos é apresentado ao longo de uma hora e meia. A inócua vida de um actor de sucesso na Califórnia, que dá voltas sobre si mesmo num tédio quase próprio de Camus, incapaz de comunicar além da superficialidade do momento – uma bela descrição da verdadeira vida que se oculta no mundo da aparência hollywoodiana.

A história adquire o seu conteúdo pela aparição da filha do actor Marco, que vem trazer uma lufada de humanidade à sua vida. Mas é principalmente pela estética que este filme convence: um cinema muito cuidado, em que tudo tem o seu porquê. Perguntem-se, se não, porque é que uma das frases mais significativas que Marco diz à sua filha, quase que nem se ouve pelo ruído do motor dum helicóptero.

Desta vez, permito-me um spoiler: no fim, o Ferrari deixa de dar voltas e vai numa certa direcção...

11/03/2011

O regresso (Vozvrashcheniye)

Andreï Zviaguintsev, 2003

Ainda recordo como fiquei impressionado e em silêncio nos dias seguintes à primeira vez que vi esta obra-prima, que é também a primeira obra do realizador russo Zviaguintsev. A sua essencialidade na apresentação de personagens, cenas, fotografia e banda sonora, típica da dureza eslava, promove um confronto com a nossa essência humana, ao qual é difícil permanecer indiferente.

É dura também a história: Andrei e Ivan, dois irmãos pré-adolescentes que vivem com a mãe, são levados pelo quase desconhecido pai a uma viagem sem destino certo, sem objectivo definido. O primeiro irmão é obediente e confiado; o segundo, teimoso e céptico. O misterioso pai, ao longo do filme, exerce sobre os filhos uma autoridade fascinante, segundo uma visão pedagógica semelhante à do Deus cristão: dá responsabilidades, não poupa o trabalho individual, obriga a assumir as consequências dos próprios erros.

Os simbolismos, típicos duma certa tradição russa, são neste caso riquíssimos. Para além de múltiples referências pictóricas da tradição cristã, não podemos deixar de notar que estas crianças representam atitudes contemporáneas perante o problema de Deus, ou que a estrutura do filme retoma alguns momentos da Semana Santa.