28/12/2011

Contos e lendas da tradição cristã, por Lois Rock

Lisboa: Verbo, 2006, pp. 96, 17,00€

«Contos de adultos para crianças» ou «contos de crianças para adultos» são expressões cliché, mas adaptam-se bem a esta breve e simples colecção de sabor quase natalício. Sobretudo, as modernas ilustrações dão-nos a entender imediatamente que o volume não é (ou pelo menos não é só) infantil.

Alguns destes contos são histórias e lendas de santos: são Patrício, santo Isidro, são Cristóvão, Bakhita... Outros narram com imaginação factos que, se não aconteceram, podiam ter acontecido, e assim transmitem valores cristãos. Escritos em modo maduro e poético, são mais sugestivos do que explícitos, pelo que exaltam a nossa capacidade criativa.

O marinheiro, avó da Marisa, que protagoniza o último dos contos, diz a um certo ponto: «Explorei tudo o que me apeteceu neste mundo e agora anseio por descobrir o outro». Pode ser o mote para esta singela leitura.

17/12/2011

Lir, de Wim Mertens (1985)

Wim Mertens é um compositor minimalista belga, nascido em 1953 e ainda activo, que já publicou dezenas de álbuns. De entre eles, Maximizing the audience (1985) destaca-se pela sua novidade: é o primeiro da sua longa carreira em que às suas composições de piano acrescenta a sua voz. Depois dele, outros instrumentos e vozes farão parte do seu vastíssimo repertório.

A composição Lir, de 18 minutos e 18 segundos na sua interpretação original, é por mim considerada a mais bela e profunda de todas: baseada num tema melancólico que se repete com leves variações, no início e no fim da partitura, no seu centro decompõe cada elemento desse tema, explorando como um espeleólogo nas caves mais recônditas do nosso espírito. Impossível que não se alargue a medida que escutamos.

Ainda recordo a primeira vez que ouvi estas notas num programa de rádio especializado em novas músicas. Tomei nota do estranho nome da composição e comprei o disco de 45 rpm. Hoje, as novas tecnologias tornaram tudo muito mais fácil.

11/12/2011

A Sagrada Família

Antoni Gaudì, 1882-

É uma espécie de catedral do nosso século, que pretende dominar a paisagem duma cidade moderna como Barcelona, como as catedrais góticas durante a Idade Média e Moderna. O seu projectista e primeiro arquitecto, cujo processo de beatificação está a decorrer, quis seguir esse exemplo mesmo nos meios de financiamento: são só as ofertas de crentes e visitantes que o tornam um «templo expiatório», e que fazem com que a sua construção já ultrepasse o século desde que começou.

A sua planta, mais ou menos tradicional, tem as dimensões dum campo de futebol. O seu interior pretende assemelhar-se a um bosque, o lugar onde o homem se sente mais bem acolhido segundo Gaudì, enquanto que o seu exterior aponta para o Céu com as suas numerosas agulhas que deverão chegar até aos 170 metros.

Talvez o aspecto mais espectacular são os conjuntos escultóricos, um dos quais foi realizado quase na totalidade pelo próprio Gaudì, o da Natividade. Perfeitamente inserido nas simbologias bíblicas e litúrgicas católicas, com imaginação dá lugar neles a profissões (desde o carpinteiro ao astrólogo), a animais (desde tartarugas a galos), a plantas e pessoas nas mais variadas actividades.

Não vale a pena ver fotografias ou vídeos: é preciso ver para experimentar uma verdadeira maravilha mundial.

23/11/2011

Restless (Inquietos)

Guus Van Sant, 2011

Segundo a Bíblia, Enoch era o nome dum neto de Adão e Eva: viveu menos anos do que todos os seus parentes, mas esses seus anos faziam um número perfeito. E este é o invulgar nome do protagonista do poético filme de Van Sant Restless, um jovem inquieto por uma série de perguntas que envolvem a morte e a fragilidade da vida, paradoxalmente ligadas a experiências de beleza e perfeição.

São temas caros ao realizador de Will Hunting, Paranoid Park ou Elephant (mas também de Milk). E são temas que não deixam tranquilo o espectador, fazendo deste título uma espécie de carta de apresentação do que se vai obter no fim da fita. Mas é um paradoxo, porque a medida que a história avança sentimo-nos atraídos pela sua verdade e beleza, compreendendo melhor aquilo que no princípio (ou no trailer) parece quase surreal.

O filme está em pé graças às maravilhosas interpretações dos jovens Mia Wasikowska e Henry Hooper, num quase contínuo primeiro plano que atinge momentos únicos. A seguir, a fotografia e a música complementa.

Uma imagem usada pode servir de chave interpretativa do filme: existe uma espécie de pássaro que canta músicas belíssimas só de manhã, e isto é, explica a protagonista, porque ao adormecer pensa que vai morrer, mas quando acorda de novo no dia seguinte canta a alegria da vida.

18/11/2011

Finding Neverland (À procura da Terra do nunca)

Marc Forster, 2004

Há autores e obras que permanecem na história da literatura e que, infelizmente, se conhecem mais de forma indirecta do que directa. É o caso dos romances de John Barrie dedicados à mítica e quase mística figura de Peter Pan, a criança que nunca cresceu.

Eis um filme que indirectamente nos aproxima quer do escritor, quer da sua genial personagem. No fundo, o seu realizador Forster pretende explorar um único tema, que encerra ambas histórias: aquela pessoal de Barrie, centrada no seu envolvimento com uma família cheia de crianças obrigadas a crescer, e aquela de Peter Pan, encarnada nalguns eventos fantásticos representados.

«Representação» é uma palavra-chave do filme: re-apresenta histórias, mitos, factos, que reconhecemos na sua universalidade. O teatro também joga um papel importante no desenrolar da acção: nele, difumina-se a fronteira entre o que é e o que poderia ser. É óbvio que neste âmbito joga-se sempre uma ambiguidade, uma espécie de contraposição entre viver o real e a fantasia; mas um olhar comprensivo saberá integrar ambas realidades humanas.

Cheio de ternura quase natalícia e com interpretações inesquecíveis de Johnny Depp e Kate Winslett, vale a pena tirá-lo do fundo das nossas prateleiras e encontrar de novo essa Terra que abre ao eterno.

05/11/2011

I confess (Confesso)

Alfred Hitchcock, 1953

«Montgomery Clift encarna neste filme o perfeito dilema que atravessa sob forma latente todo o cinema de Hitchcock: saber e não poder dizer, ser culpado do que outrem faz». Esta expressão sintética do crítico de cinema e artes visuais Olivier-René Veillon concentra o valor insuperável desta maravilhosa obra-prima.

A confissão a que faz referência o título é o sacramento católico, central no seu necessário segredo para o desenvolvimento da história, mas também a confissão das culpas, que se omite ao longo da mesma e que constitui a genialidade do suspense do cineasta inglês.

Muito simplesmente: nos cinco primeiros minutos do filme apresenta-se um sacristão que confessa um assassinato cometido pouco antes (vestido de padre), do qual o confessor será incriminado. A partir daí, o assassino sabe, o padre sabe, nós sabemos, mas todos estamos impossibilitados de mudar o rumo duma tragédia injusta.

O jovem Clift interpretou o papel da sua vida, e Hitchcock captou com maestria planos e sequências dignos de admiração.

23/10/2011

Sophia de Mello Breyner (1919-2004)

Quase que dizia que é a maior poetisa a nivel universal de todos os tempos. Mas é ainda mais do que isso. É luz que ilumina a experiência humana.

Baste o seguinte texto, que descreve o seu modo de entender a arte poética, para incentivar a leitura de todos os seus livros de poesia, ensaio, contos...

«A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima de uma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros artistas veio confirmar a objectividade do meu próprio olhar. Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas. E também a reconheci intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeo de Souza-Cardoso (…).

«Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do amor e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor (...)».

04/10/2011

Pela estrada fora (On the road), de Jack Kerouac

Lisboa: Relógio d'Água, 2011 (1955), pp. 344, 19,00€

«“We gotta go and never stop going till we get there” “Where we going, man?” “I don't know but we gotta go”». É talvez o mais célebre diálogo, não só deste romance, como de toda uma geração. Chamada nos anos 50 e 60 de geração beat, descreve os grupos de jovens «rebeldes» à volta do jazz, a marijuana e o amor livre.

Lançados pelas estradas dos Estados Unidos, vão, andam, sem parar, mas também sem saber aonde. Aliás, no desenvolvimento deste romance paradigmático deste movimento literário, percebe-se que a chegada ao ponto prefixado é quase que uma tragédia: a monotonia e o burguesismo contra o que se rebelam.

Se bem toda esta imagística está hoje superada, há no livro belíssimas sugestões ideais, que infelizmente também ficaram obscurecidas pelo cepticismo contemporâneo. Exemplos: «Tenho seguido ao longo de toda a vida as pessoas que me interessam, os loucos, os loucos por viver, loucos por falar, loucos por ser salvos, desejosos de tudo ao mesmo tempo». «Tentava comunicar-lhe a minha excitação sobre a vida e sobre as coisas que poderíamos fazer juntos. Estávamos deitados, olhando para o tecto e perguntando-nos o que teria Deus pensado para fazer a vida tão triste». «Nunca me senti melhor e mais feliz com o mundo e olhando para crianças maravilhosas que brincam ao Sol»...

15/09/2011

O Sentido Religioso, de Luigi Giussani

Lisboa: Verbo, 2000 (1984), pp. 210, 15,00€

Este é o primeiro livro duma trilogia conhecida como o «PerCurso», palavra que joga com dois significados: um curso de aulas sobre várias matérias e um itinerário em contínuo crescimento. Enquanto que este volume dedica a sua atenção ao homem e à sua abertura ao transcendente, os outros dois falam de Jesus Cristo e da Igreja.

Mas, atenção, devemos eliminar da palavra «religioso» tantas imagens e preconceitos que a ligam a antigas superstições ou a práticas sentimentais ou devotas, só para aqueles «que têm essa sensibilidade». Com efeito, este texto nasce a partir de aulas no secundário (o seu Autor não redigiu se não os apontamentos dos seus alunos), e pretende ajudar a compreender que essa dimensão é própria de todo ser humano, independentemente das suas crenças ou práticas.

Uma análise das palavras mais repetidas no texto, ao contrário do que poderíamos esperar, levava-nos a descobrir que estas são «razão», «liberdade», «realidade», «homem»... E que, portanto, duma forma mais experiencial que filosófica, é de nós que se está a falar.

Um livro que mudou a vida de muitas pessoas: a não perder.

13/07/2011

São Francisco, de Raoul Manselli

Petrópolis: Vozes, 1997, pp. 331, 21,00€

Existem inúmeros volumes dedicados à figura de são Francisco de Assis. Até porque já nos primeiros anos após a sua morte vários autores narraram os factos mais relevantes da sua vida, e ainda outros elaboraram lendas e histórias cheias de eventos miraculosos.

O volume proposto coloca como premissa um estilo moderno de fazer história, a partir de um modelo crítico baseado na confrontação das diferentes fontes franciscanas, na pesquisa detalhada e na análise exaustiva dos documentos considerados indubitáveis.

Assim, Manselli escreve um livro histórico de grande realismo e profundidade, que põe em relevo os factos centrais da vida do santo e que actualiza as grandes questões do franciscanismo de todos os tempos. Com um tom sóbrio e imparcial, leva-nos a conhecer o contexto histórico de Francisco e do nascimento da sua Regra. Um ponto de referência evidente para quem se queira aproximar de ambos.

16/06/2011

A árvore da vida (The tree of life)

Terrence Malick (2011)

A pergunta religiosa do homem moderno pode-se sintetizar nesta: se Deus existe, porque existe o mal? Porque as doenças, a morte, os desastres ecológicos, a infelicidade? Malick responde neste filme propondo a beleza da criação e da vida (longe de respostas doutrinais ou morais), visível na natureza, nos arranha-céus de Houston, nas crianças que crescem ou nas belíssimas músicas de Dvorak, Gorecki ou Bach.

Claro que também está presente no filme a resposta cristã: desde o início encontram-se ressonâncias bíblicas, assim como uma visão católica da realidade que encontra expressão no padre que ajoelha numa capela ou numa certa iconografia.

Reduzir esta obra-prima a este aspecto seria fazer o contrário do que se propõe, que é relançar o nosso olhar numa visão completamente nova. Malick, ouso dizer, desafia-nos a ver o mundo desde o ponto de vista de Deus. E abre-nos ao diálogo com Deus, cheio de difíceis questões: a evolução (que evita com elegância a fase da aparição do homem), o nosso lugar no mundo, a vida além deste mundo, a Vida com V grande.

Sem ser simplista, na medida em que isso é possível numa breve recensão, a história (mais uma rapsódia que um romance) resume-se na contraposição de duas estradas: a natural, no seu sentido menos nobre, representada por Brad Pitt, e a da graça, Jessica Chastain. Sean Penn, impressionante, escolheu aquilo que faz o espectador: atravessar o limiar e ver. Como Deus vê.

14/06/2011

Pina

Wim Wenders (2011) Este é um filme centrado na beleza, e a beleza é algo que não se compreende nem se pode explicar. Pode-se só ver, experimentar. Com efeito, o seu realizador Wenders, e também uma das bailarinas do filme por palavras semelhantes, afirmam que Pina Bausch «confiava muito mais naquilo que se pode ver que naquilo que se pode dizer». E aqui vemos filmagens extraordinárias, como que nos fazem entrar num palco, que ao mesmo tempo não cansa, porque se desdobra em contextos urbanos, salas de espectáculos, lugares monumentais e florestas. A través da dança, de facto, esta homenagem à recentemente falecida coreógrafa que dá título à longa-metragem é uma poesia visual. Mas não só: também mostra a grandeza humana desta mulher, que não se pode reduzir à pura originalidade da sua arte, mas que se manifesta muito bem ao fazer vir ao de cima o que cada indivíduo é. Sirva como exemplo a cena em que um gesto de alegria que um bailarino realiza é desenvolvido numa coreografia completa. Predominam as cenas em que uma mulher protagonista se mostra frágil ou debilitada, sinal da profundidade do seu drama humano, e uma pergunta de fundo explicitada quase no fim (antes do fado final em que os olhos são comparados a duas Avé-Marias): «What are we longing for? Where does all this yearning come from?»

30/05/2011

Bodas de sangue (Bodas de sangre), de Federico García Lorca

Pinheiros: Peixoto Neto 2003 (1933), pp. 89, 13,00€

O teatro de García Lorca, provavelmente o maior dramaturgo de língua espanhola do século XX, tem várias constantes que o tornam a um tempo delicado, profundo e quase mítico. São estas a concepção trágica da existência, a abordagem das «grandes questões» (amor, morte, sofrimento) e a sua linguagem simples e popular.

Para além das considerações ideológicas relativas às orientações políticas ou até sexuais do autor, é impossível não reconhecer o seu génio artístico e criativo. A descrição dum mundo fechado em si próprio, onde as forças do instinto e das paixões humanas lutam por encontrar vias de escape, leva inevitavelmente a uma crise, geralmente purificadora, na forma teatral da tragédia. Podemos encontrar elementos semelhantes no teatro de Ibsen ou de Tennessee Williams.

Em Bodas de sangue, o próprio título apresenta o resumo da acção: um noivo e uma noiva, e as respectivas famílias, combinam e preparam-se para a celebração deste casamento banhado pelo sangue. Velhas paixões vencem a razão («pregos de lua fundem a minha cintura e o teu quadril»); e o destino faz justiça («tapados com dois cobertores vêm eles / sobre as costas dos altos rapazes»).

12/05/2011

Elephant

Guus Van Sant, 2003

Como é que é possível focar a delicadeza humana ao filmar um massacre num liceu americano, numa livre adaptação dos famosos assassinatos de Columbine? Parece impossível, mas o realizador Van Sant consegue fazê-lo com grande habilidade e maestria. Sobre tudo, fixando pormenores da vida quotidiana dos adolescentes de uma escola, dos seus comportamentos sociais e individuais, da sua incapacidade última de adaptar-se ao meio envolvente, da beleza de corpos, espaços, luzes, cores e contrastes.

As cenas, por vezes meditativas e genialmente entrelaçadas, não só mostram ao espectador esse dia-a-dia, mas também estão filmadas de maneira a fazê-lo entrar dentro das paredes dessa escola, como se fosse mais um adolescente desnorteado. É principalmente pelo meio dos travellings (câmaras que seguem as personagens) que parece que acompanhamos esta dúzia de jovens, literalmente escolhidos num casting improvisado num liceu.

A tensão narrativa é igualmente genial. Apesar de um ritmo pausado, sabemos desde o início que um ou alguns dos miúdos que vemos vão assassinar os outros. Por isso, perante a simpatia que por eles nasce quase espontânea, emerge também a pergunta chave do filme: porque é que se pode chegar a destruir essa humanidade com um acto tão desumano?

18/04/2011

Existe Deus?, de J. Ratzinger e P. Flores d'Arcais

Lisboa: Pedra Angular, 2009 (2000), pp. 155, 14,00€

«Um confronto sobre verdade, fé e ateísmo», é o subtítulo desta obra, que recolhe um ensaio de cada um dos dois autores da capa e a transcrição de um debate público entre ambos no ano de 2000. Então, Joseph Ratzinger era Cardeal e representava a Igreja Católica enquanto «guardião» dos dogmas e da fé, enquanto Paolo Flores d'Arcais era um dos filósofos, professores e homens de cultura que melhor representava o ateísmo italiano ou até europeu dos nossos dias.

Perante este panorama, a impressão é que vamos acompanhar duas linhas paralelas de pensamento e erudição, que só com muito esforço se vão encontrar, e ainda mais dificilmente vão aceitar pontos de verdadeiro diálogo. Se isto pode ser verdade para os ensaios recolhidos, sobre o tema da possibilidade da existência de Deus, não é bem assim no que diz respeito ao debate (que é o texto principal do opúsculo).

Moderado por um intelectual judeu, Gad Lerner, o tema da existência de Deus é proposto de forma pacífica e pouco polémica. Cada um dos dois autores defende e explica as razões que os levam a conclusões opostas, mas sem entrar na banal réplica ou no ataque despropositado. Assim, o leitor aprende com ambos, algo que não se deve desprezar nos tempos que correm...

09/04/2011

Música callada, de Frederic Mompou (1959-1967)

É difícil descrever ou categorizar esta composição de 28 trechos compostos ao longo de 8 anos pelo espanhol Mompou (1893-1987), a partir duns versos de são João da Cruz: «A noite sossegada (...) / a música calada / a soledade sonora».

O próprio Mompou comentou: «Esta música é calada porque a sua audição é interna. Contenção e reserva. A sua emoção é secreta e somente toma forma sonora nas suas ressonâncias sob a fria abóbada da nossa soledade, penetrando nas grandes profundezas da nossa alma».

É música singela, pura, essencial. Difícil de descrever por palavras. A quem conseguir deixar-se arrastar pela sua sonoridade porém, aguardam grandes descobertas.

Versões aconselhadas: uma gravação de 1974 do próprio compositor, ou a mais recente pelo pianista Javier Perianes.

18/03/2011

Somewhere (Algures)

Sofia Coppola, 2010

Um esplêndido Ferrari 360 Modena preto repete um percurso no asfalto, no silêncio duma paisagem árida só quebrado pelo seu motor. O plano parece desenquadrado: vemos só parte deste recorrido e não temos outros elementos que o caracterizem. Mas, num certo momento, o Ferrari pára e saindo o seu motorista, Johnny Marco, formam um plano tão perfeito que parece um postal ou uma fotografia de Prémio Pulitzer.

Estes três primeiros minutos de filme descrevem bem o que nos é apresentado ao longo de uma hora e meia. A inócua vida de um actor de sucesso na Califórnia, que dá voltas sobre si mesmo num tédio quase próprio de Camus, incapaz de comunicar além da superficialidade do momento – uma bela descrição da verdadeira vida que se oculta no mundo da aparência hollywoodiana.

A história adquire o seu conteúdo pela aparição da filha do actor Marco, que vem trazer uma lufada de humanidade à sua vida. Mas é principalmente pela estética que este filme convence: um cinema muito cuidado, em que tudo tem o seu porquê. Perguntem-se, se não, porque é que uma das frases mais significativas que Marco diz à sua filha, quase que nem se ouve pelo ruído do motor dum helicóptero.

Desta vez, permito-me um spoiler: no fim, o Ferrari deixa de dar voltas e vai numa certa direcção...

11/03/2011

O regresso (Vozvrashcheniye)

Andreï Zviaguintsev, 2003

Ainda recordo como fiquei impressionado e em silêncio nos dias seguintes à primeira vez que vi esta obra-prima, que é também a primeira obra do realizador russo Zviaguintsev. A sua essencialidade na apresentação de personagens, cenas, fotografia e banda sonora, típica da dureza eslava, promove um confronto com a nossa essência humana, ao qual é difícil permanecer indiferente.

É dura também a história: Andrei e Ivan, dois irmãos pré-adolescentes que vivem com a mãe, são levados pelo quase desconhecido pai a uma viagem sem destino certo, sem objectivo definido. O primeiro irmão é obediente e confiado; o segundo, teimoso e céptico. O misterioso pai, ao longo do filme, exerce sobre os filhos uma autoridade fascinante, segundo uma visão pedagógica semelhante à do Deus cristão: dá responsabilidades, não poupa o trabalho individual, obriga a assumir as consequências dos próprios erros.

Os simbolismos, típicos duma certa tradição russa, são neste caso riquíssimos. Para além de múltiples referências pictóricas da tradição cristã, não podemos deixar de notar que estas crianças representam atitudes contemporáneas perante o problema de Deus, ou que a estrutura do filme retoma alguns momentos da Semana Santa.

21/02/2011

Vermelho (Rouge)

Krzysztof Kieslowski, 1994

A terceira cor da bandeira francesa representa simbolicamente a paixão, o amor e a fraternidade, neste que foi o último filme (e talvez o mais genial) do realizador polaco Kieslowski.

Como em Azul e em Branco, o tema é apresentado a través duma história central que se entrecruza com outras: Valentine, uma modelo bela e singela, ao tomar conta do cão que atropelou, toma conhecimento do seu dono, um velho juiz carrancudo e sozinho, que vive no ódio e no empenho por demonstrar a maldade do mundo. Pelo contrário, Valentine e a sua história, que o filme fará confluir num último plano e numa última cena dignos de estar entre os melhores da história do cinema, vão proclamar a fraternidade como possível e real.

Também numa forma mais perfeita do que nos outros filmes, os planos protagonizados pela cor vermelha e as aparentes coincidências chegam aqui ao seu ápice.

Uma cena aparentemente marginal faz entrever a genialidade desta trilogia. Nos dois primeiros filmes, aparecia em momentos diferentes uma pessoa que deitava uma garrafa de vidro num contentor. Neste, uma velhinha curvada tenta fazê-lo sem sucesso e Valentine, em sinal da fraternidade universal humana, ajuda-a.

10/02/2011

Branco (Bialy)

Krzysztof Kieslowski, 1994

Branco é talvez o menos consistente dos filmes da trilogia de Kieslowski dedicada à França e aos seus três valores nacionais. Neste, dedicado à igualdade, na realidade predominam os sentimentos da vingança e da exclusão social, causados pela falta de igualdade de direitos.

No contexto de 1994, anterior à actual configuração da União Europea, o polaco Karol, casado com a francesa Dominique, não conta com as mesmas defesas legais quando ela lhe impõe o divórcio e fica com todos os bens do casal. Literalmente obrigado a regressar à Polónia numa mala, Karol tentará atingir a «igualdade» nas nefastas consequências da falta de humanidade da relação. Olho por olho.

Se em Azul dominava a cor das águas da piscina onde Julie nadava, e em Vermelho os cartazes publicitários com a fotografia de Valentine, a neve e as paisagens frias dão o tom a Branco, sem conseguir porém um efeito tão poderoso como nas outras ocasiões. Notáveis são, nos três filmes, as interacções entre as três cores, em numerosíssimos fotogramas, e também as cenas entrelaçadas, por exemplo, nos corredores do Palácio da Justiça.

19/01/2011

Azul (Bleu)

Krzysztof Kieslowski, 1993

Azul é o primeiro dos três últimos filmes do realizador polaco Kieslowski, todos eles com títulos de cores (azul, branco e vermelho). São essas as três cores da bandeira francesa, e nos filmes representam as três ideias base da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.

Nesta entrega, o primeiro destes temas é estudado segundo a definição moderna de liberdade como ausência de ligações. Uma muito jovem Juliette Binoche, Julie no filme, perde o marido e uma filha num acidente de viação. Perante a trágica situação, de forma mais ou menos consciente decide viver uma existência anónima, independente e solitária. Como se a ausência de afectos e recordações pudesse libertá-la das suas feridas.

Felizmente, algumas pessoas do passado e a música (de Zbigniew Preisner, belíssima nos três filmes) obrigam-na a voltar a criar relações, isto é, a ter a possibilidade de ser realmente livre. Ao tentar completar a composição em que o falecido marido estava empenhado na altura, descobre a sua liberdade na realização de algo superior a ela própria.

O filme é profundamente evocativo e poético, mas antes de o ver é necessário recordar que na língua inglesa a palavra blue também significa tristonho ou deprimido...

02/01/2011

As minhas leituras, de L. Giussani

Coimbra: Tenacitas, 2010 (1996), pp. 224, 15,00€

Sem dúvida, este é um livro muito especial. Não é bem um ensaio de crítica literária, e também não é uma simples leitura comentada de alguns textos. É uma colecção de conferências ocasionais e leituras públicas feitas por um sacerdote, considerado por muitos católicos um dos grandes renovadores da cultura contemporânea e galardoado com o Prémio Internacional da Cultura Católica.

De fácil leitura, é um daqueles livros que suscitam o gosto pela literatura desde dentro: não se limita a dar alguns dados biográficos de certos autores ou indicações gerais relativas a certas obras, mas identifica neles problemas e questões universais dos homens e mulheres de todos os tempos. Assim, o leitor não só aprende a apreciar melhor as obras apresentadas, como também um método de avaliação e de leitura que considera estes processos em termos mais plenamente humanos.

Tanto se já se leram os autores comentados como se ainda não se fez, fica-se com a vontade de os reler e aprofundar ainda mais, uma vez que Giussani consegue abrir-nos horizontes novos lá onde já pensávamos ter desistido de procurar.