26/12/2008

Austrália

Baz Luhrmann, 2008

Mais do que o cartaz do filme, é o realizador Baz Luhrmann e a protagonista Kidman que despertam curiosidade e interesse nesta sugestão cinematográfica. Depois de projetos ambiciosos e arrojados como a versão moderna do Romeo + Juliet (con Di Caprio) ou Moulin Rouge, o realizador australiano apresenta o seu continente numa narração épica de tons mais tradicionais.

Destaca a sua realização óptima, principalmente a fotografia, os planos desde ângulos impensáveis e o discreto uso de sofisticadas tecnologias informáticas para criar efeitos especiais dignos duma grande produção.

Mas, principalmente, este realizador apresenta-nos uma história com ideais. «Tu és a tua história, e se não tens história, não pertences». No meio das vicissitudes de Sarah e Drover, junto com a criança Nullah, subjazem valores como a família, a amizade, o anti-racismo, a fidelidade, o heroísmo... muito apropriados para o nosso tempo.

Talvez seja necessário criticar a sua duração, provavelmente excessiva. Algumas falas da criança a armar-se em narrador omnisciente ou algumas imagens do avô feiticeiro, podiam ter sido cortadas antes e nada se perdia... Mas, no panorama actual, vale a pena tolerar essas cenas a mais (ou o sutaque australiano de quase todas as personagens, realmente difícil de ouvir com paciência...), porque ideais há cada vez menos...

23/12/2008

Cristo, O Senhor – A Fuga do Egipto (Christ the Lord – Out of Egipt), de Anne Rice

Lisboa: Europa-América, 2008, 18,90€

Uma proposta para o Natal: a autobiografia de Jesus.

Como sabemos, Jesus nunca escreveu nada, se não algo sobre a areia enquanto era interrogada a mulher adúltera de que fala o Evangelho. Mas este romance imagina a descrição de como o próprio Jesus teria escrito as suas próprias memórias.

Num estilo fácil e de leitura rápida, cheio de diálogos e acção, Anne Rice imagina como terá sido a passagem da infância à autoconsciência daquela criança que nasceu em Belém nas circunstâncias que já conhecemos. Da sua infância, sabemos pouco. Assim, no romance Jesus começa a fazer milagres, nota que nunca chamou «pai» a José, percebe que vive uma relação especial com Deus, interroga-se sobre os factos do seu nascimento que sempre lhe foram escondidos... e faz-nos participar daquilo que terá acontecido na sua mente.

Como se pode imaginar, a matéria é teologicamente complexa: o dogma cristão afirma que Jesus era «verdadeiro homem e verdadeiro Deus». Mas como é que ele chegou a descobrir quem era? Que consciência tinha de si próprio? Como é que deu por isso? Sem fazer teologia, a Autora demostra uma enorme capacidade imaginativa, impecável desde o ponto de vista da fé cristã e absolutamente fascinante na descrição dos que podem ter sido os primeiros anos de vida de Jesus.

Anne Rice, que escreveu best-sellers como a Entrevista com o Vampiro, converteu-se há poucos anos e já publicou em inglês o segundo volume desta Vida de Jesus, assim como uma sua autobiografia pessoal em que descreve essa conversão. O seu site pessoal oferece ampla informação.

14/12/2008

Great expectations (Grandes esperanças), de Charles Dickens

Lisboa: Europa-América, 1975 (1861), 460 pp.

Já passaram os tempos do Bildungsroman, ou romances em que se narra o crescimento físico e espiritual duma personagem principal. Mas voltar a eles de vez em quando é um prazer, quando são tão humanos e completos como este, um dos últimos do aclamado Dickens.

Trata-se da descoberta progressiva dos valores humanos de Pip, o narrador. A história começa com a infância do órfão Philip Pirrip, na companhia da sua irmã e cunhado. A seguir, será levado à casa duma aristocrática excéntrica, onde se vai apaixonar pela sua filha: uma grande história de amor atormentado. Pip recebe generosos presentes económicos anónimos, de modo que consegue ir viver a Londres à procura do ascenso social. Mas a cidade faz-lhe perder a sua humanidade, numa luta contínua entre o amigo fiel e generoso que ele é e a pessoa ambiciosa e triste que se está a tornar.

O drama humano da personagem tem muitas facetas e as suas aventuras tocam variados âmbitos da existência, pouco fáceis de resumir. A atmosfera é fascinante, e tem sido reproduzida com sucesso numa versão clássica de cinema (David Lean, 1946), e também numa versão moderna que altera a época e os locais com certa originalidade e eficácia (Cuarón, 1998).

É um daqueles romances que se ama ou se detesta. Basta ler os primeiros capítulos para saber em que categoria nos colocamos: amamos Pip, temos compaixão dele, alegramo-nos com os seus sucessos e conquistas, ou então pensamos que é uma perda de tempo saber mais dele e da sua vida. Eu fiquei no primeiro grupo, das grandes esperanças, e não fui disiludido...

09/12/2008

Brideshead revisited (Reviver o passado em Brideshead), de Evelyn Waugh

Lisboa: Relógio d'água, 2002 (1945)

Não se deixem enganar por versões televisivas ou cinematográficas de mau gosto. Evelyn Waugh é um escritor brilhante, e o seu romance mais conhecido é uma pérola no panorama da literatura do século XX. Dizia ele que, de não ser escritor, teria sido carpinteiro, para poder elaborar os seus trabalhos tão delicadamente como as suas obras literárias. E assim, na sua prosa encontramos a divertida ironia e a profundidade psicológica dum génio britânico.

A amizade entre Charles Ryder e Sebastian Flyte, que não tem nada de homossexual, descreve a decadência da aristocracia católica da Inglaterra dos anos vinte. É um símbolo do preço a pagar para chegar ao bem-estar conseguido pelos laboristas ingleses a seguir à Segunda Guerra Mundial. Para Waugh, esse preço era demasiado caro: a vida cinzenta do common man não compensava o relativo progresso da sua época.

Nostalgia do passado, desejos frustrados e problemáticas religiosas e amorosas misturam-se com grande ligeireza e humorismo, num romance que nos faz reflectir sobre o peso das nossas escolhas, o valor da amizade e o passar do tempo. Não percam tempo no cinema e leiam o livro!

23/11/2008

Rebecca

Alfred Hitchcock, 1940

Um fantasma obscura a mais romântica paixão dos fabulosos Joan Fontaine e Laurence Olivier ao chegar à mansão de Manderley: trata-se da primeira esposa dele, Rebeca, falecida em circunstâncias trágicas. O suspense está criado, e a tensão vai crescendo a medida que este fantasma invade mais e mais a vida desta débil femme fatale.

Por vezes, um filme antigo é o melhor investimento para assegurar duas horas bem passadas. E com Hitchcock temos a certeza de não nos enganar. Em particular, esta fantástica criação (tão válida como o romance homónimo de Daphne du Maurier) tem o mérito de ser uma história construída num crescendo que não pode não arrepiar. Por não falar das reviravoltas típicas do cinema deste britânico implacável. Foi o primeiro filme holiwoodiano de Hitchcock e recebeu vários prémios.

Tematicamente, destacam-se dois lugares de interesse. Em primeiro lugar, o desenrolar-se duma suspeita, que bloqueia a relação natural com a realidade: a inocência feliz do casal perde-se quando os malvados empregados da residência introduzem a desconfiança. Esse «pecado» será irreversível: aquela inocência, uma vez perdida, já não se poderá recuperar. Em segundo lugar, um tema caro a Hitchcock é a luta entre o bem e o mal, neste caso dificilmente distintos numa encruzilhada onde as personagens parecem não encaixar-se. Mas o bem acaba por vencer... quase sempre.

17/11/2008

Um bom homem é difícil de encontrar (A good man is hard to find), de Flannery O'Connor

Lisboa: Cavalo de ferro, 2006 (1957), 235 pp., 13,5€

Poderíamos dizer o mesmo dum bom livro: nem sempre é fácil de encontrar. Mas quem procura tem mais probabilidades de o encontrar.

Seria um bom lema para as personagens dos 10 contos recolhidos nesta colecção, primeira de dois séries publicadas recentemente em língua portuguesa. Há algumas que não procuram nada, que calculam os benefícios e prejuízos de cada evento, que já sabem. Há algumas ainda piores: proclamam-se inclusivamente crentes (como a Autora católica), acreditam na bondade do género humano, têm uma fé sem fundamentos, mas qualquer imprevisto lhes tira do sério.

E imprevistos há mesmo muitos nos contos de Flannery O'Connor. Nunca o leitor sabe o que se vai passar, ou então, quando se vai lendo e conhecendo o seu estilo, nunca o leitor deseja o temido final que pressente que ela está a preparar. Por vezes cruel no seu humorismo, quase à la Quentin Tarantino, não deixa de arrancar um sorriso e de fazer pensar mais do que parecia a primeira vista.

«Teria sido uma boa mulher», diz uma das personagens logo a seguir ao assassínio dessa mesma mulher, «se tivese estado lá alguém para a matar em cada minuto da vida dela». Com certeza, os leitores encontarão nesta leitura incentivos para não merecer ser mortos.

11/11/2008

A Gramática do Assentimento, de John H. Newman

Lisboa: Assírio e Alvim, 2005 (1865), 472 pp., 26€

O incipit deste livro é uma frase de Santo Ambrósio que diz: «Non in dialectica complacuit Deo salvum facere populum suum», isto é: «Não aprouve a Deus salvar o seu povo com a dialéctica».

Newman converteu-se do Anglicanismo ao Catolicismo, e será proximamente proclamado beato pelo Papa Bento XVI. Mas não foi por uma dialéctica: foi como a planta que desenvolve aquilo que já estava presente desde o princípio. A conversão, de facto, não é outra coisa que descobrir de maneira mais profunda e verdadeira aquilo em que já se acreditava. Por isso, Newman fala da sua conversão como assentimento àquilo em que desde sempre ele próprio acreditou.

Newman teria negado que a sua conversão fosse sinal de santidade. A este respeito escreveu: «Não tenho a tendência a ser santo – é uma coisa triste dizê-lo. Os santos não são homens de letras, não amam os clássicos, não escrevem histórias».

Dele disse o ainda Cardeal Ratzinger: «Newman expôs na ideia do desenvolvimento a própria experiência pessoal de uma conversão jamais concluída, e assim ofereceu-nos a interpretação não só do caminho da doutrina cristã, mas também da vida cristã. Newman pertence deveras aos grandes doutores da Igreja, porque ele toca ao mesmo tempo o nosso coração e ilumina o nosso pensamento».

02/11/2008

Gabriel Fauré, Requiem (1890)

«Tal e como é único o Ave verum corpus de Mozart, assim o Pie Jesu de Fauré», disse um famoso compositor do século passado, Sant-Säens. De facto, há uma força extraordinária nas suas singelas palavras: Pie Jesu Domine, dona eis requiem, requiem sempiternam, repetidas insistentemente por uma voz soprano cheia de ternura e compaixão.

O Requiem é uma oração: trata-se das partes cantadas duma Missa (em rito latino) pelo descanso eterno dum defunto. «Jesus piedoso, dá-lhe o descanso, o descanso eterno».

Mas esta forma de oração composta por Fauré tem uma ternura única, tem uma simplicidade que nos aproxima dum Céu desejável. Não é, sem dúvida, o terrível julgamento de Mozartiana memória; mas também não é nebuloso ou arcádico. Pelo contrário, o Céu que este Requiem apresenta é melódico, cheio de vida, e ao mesmo tempo solene e pacificante.

Pode-se ouvir ao vivo na Igreja de São Roque, no próximo Sábado 8 de Novembro, junto com uma outra peça de interessante qualidade: In paradisum, do compositor Carrapatoso, que alguns dizem ser o maior compositor português vivo.

27/10/2008

A estrada (The road), de Cormac McCarthy

Lisboa: Relógio D'Água 2007, 192 pp., 14€

Um mundo sem Deus, sem destino, sem sentido, sem porquê, sem beleza, sem humanidade. Tudo vai unido, porque se falhar um destes elementos, os outros não podem existir.

Por contraste, apercebemo-nos de que o nosso mundo, este mundo, é belo, comove-nos, porque nele tudo está ordenado inteligentemente em nosso favor. Até quando não reparamos. Embora não reparemos habitualmente.

Arrepiante desde a primeira página, um pai e um filho caminham por uma estrada. Não percebemos o que se passa, mas tudo é diferente: «the end of the world as we know it». Dialogam, percebemos que o filho é alguém especial. Será que têm uma missão? Vale a pena tentar descobrir.

Assim falaram deste livro no Guardian: «Emotionally shattering... The Road affirms belief in the tender pricelessness of the here and now. In creating an exquisite nightmare, it does not add to the cruelty and ugliness of our times; it warns us how much we have to lose... Beauty and goodness are here aplenty and we should think about them. While we can».

22/10/2008

Jason Mraz, We sing, we dance, we steal things (2008)

Não é provavelmente o melhor de Jason Mraz. A medida que a carreira e a fama deste artista do West americano crescem, é maior o peso da producção e dos arranjos, que nem sempre permanecem imunes ao fácil e ao comercial.

Ainda assim, sabemos que Mr. A-Z, ou Waiting for my rocket to come, também não eram tão poderosos como as versões ao vivo das músicas neles incluidas. Pena é que a digressão de Mraz se limite aos Estados Unidos, pelo menos no que já está programado.

Neste disco, como nos passados, assistimos a um banho de positividade. Letras simples, sugestivamente poéticas, escondem sempre histórias, pessoas, aventuras, nas quais Mraz destaca sempre um olhar positivo e valorizador da experiência humana. Ele próprio confessa-o nos seus concertos: não há ninguém que lhe passe ao lado que não acabe por se tornar parte de uma sua música. E isto é agradável ao ouvinte atento: encontramo-nos descritos, junto com os nossos sonhos, amigos, amores, recordações do passado.

Uma amostra: o início da primeira faixa:

Wake up everyone

how can you sleep at a time like this

unless the dreamer is the real you

Listen to your voice

the one that tells you to taste past the tip of your tongue

leap and the net will appear

I don't wanna wake before

the dream is over

I'm gonna make it mine

18/10/2008

Burn after reading (Queimar depois de ler)

Joel & Ethan Coen, 2008

Diz-se nos cartazes que é uma comédia, mas alguns saem do cinema sem saber muito bem. «Inteligence is relative» é a pista que nos leva a pensar, nos primeiros minutos do filme, que se trata duma série de personagens um pouco peculiares, com vidas e histórias que nos farão rir durante 90 minutos.

Mas a medida que a trama se faz mais clara (e está muito bem construída), o humor torna-se mais negro e o espectador inteligente descobre que as personagens vivem verdadeiros dramas. Estão imersos na burocracia da CIA, na superficialidade de quem está disposto a vender tudo por uma cirugia estética, na fobia de quem se acha perseguido por grandes complots internacionais.

É como uma tragédia grega contemporánea, onde as personagens são conduzidas pelo destino a um fim que não desejam (para algum deles até irreversível).

Não saberíamos fazer melhor, pensamos nós. E saimos do cinema a pensar, que não é pouco hoje em dia: se a nossa sociedade está condenada ao desastre total, se poderíamos fazer alguma coisa para melhorar, se o mundo é mesmo assim.

A destacar o papel de Brad Pitt, normalmente pouco arriscado ou original, que neste filme é sem dúvida o mais divertido.

13/10/2008

Ortodoxia, de G. K. Chesterton

Lisboa: Aletheia 2008 (1908), 200 pp., 16€

Na sua Autobiografia, G. K. Chesterton afirma que «até na época em que eu não acreditava em nada, acreditava naquilo que alguns chamam "o desejo de acreditar"». Por isso, a Ortodoxia, que hoje aparece numa nova edição portuguesa e publicada originalmente antes da sua conversão «oficial», no fundo é tão ortodoxa como os seus últimos escritos.

Nesta obra, o genial autor británico faz uso da sua característica ironía, sempre simpática e fácil de ler, e dos paradoxos que lhe deram fama internacional. Nela afrontou temas actuais na passagem do século XIX ao século XX, que curiosamente são também de grande actualidade nos nossos dias. Quase ensaio, quase transcrição de linguagem falada, não deixa indiferente ao leitor desejoso de se interrogar pelos grandes problemas da convivência social e das relações humanas.

Como amostra, um breve fragmento que circula nestes dias entre os amigos:

«É fácil ser louco; é fácil ser herege. É sempre fácil permitir que o século leve a sua avante; o difícil é resistir-lhe.

É sempre fácil ser moderno; como é fácil ser pretensioso. Teria sido realmente muito simples cair em qualquer das armadilhas simples do erro e do exagero que moda após moda e seita após seita montaram no caminho do cristianismo.

Cair é sempre simples; a pessoa pode cair num número infinito de posições, mas só pode permanecer de pé numa posição. A coisa mais óbvia, a atitude mais domesticada, teria sido efectivamente deixar-se levar por qualquer desses caprichos, desde o gnosticismo até ao cientismo cristão.

Tê-los evitado é que foi uma espantosa aventura; na visão que eu tenho dos factos, o carro dos céus avança estrepitosamente pelos tempos fora, as domesticadas heresias vão cedendo e prostrando-se, a selvagem verdade progride titubeando, mas sem nunca cair».