18/02/2016

Há lodo no cais (On the waterfront)


Elia Kazan, 1954



Terry Malloy é o extraordinário protagonista desta obra-mestre, representado por um muito jovem Marlon Brando. Dividido, o seu drama desenvolve-se entre a aceitação conformista da rede mafiosa liderada pelo seu irmão e por Mr. Friendly, e as várias provocações suscitadas pelo padre Barry, pela atrativa Edie e pela própria verdade dos factos.

No cais ao qual cada manhã se dirige em busca de trabalho, privilegiado pela sua proximidade e simpatia para com os chefes da máfia local, há lodo: há mentiras, há jogos de poder, há vingança e morte para quem tente denunciar o status quo.

O padre Barry, provocado pela morte de um jovem e pela questão: “que classe de santo fica escondido numa igreja?”, decide tomar parte ativa nos sindicatos do cais. A jovem Edie, que sofre a perda dum irmão assassinado por “bufo”, também é atirada para o mesmo terreno. E assim, o silencioso Terry, ex-pugilista que toma conta de pombos no seu telhado, tem a oportunidade de alcançar uma libertação, de realizar um gesto que pode redimir a sua antiga cumplicidade. Mas nada vai ser fácil...

09/02/2016

Se Deus quiser (Se Dio vuole)

Edoardo Falcone, 2015
Um médico ateu, cheio de si próprio e de belas frases feitas, vai encontrar-se perante uma situação familiar que o deixará em xeque. Surpreendidos por um cenário inesperado, cada um dos elementos da sua família reagirá de forma diferente. A figura de um padre católico poderá estar no centro do problema emergente, ou da sua solução. Sem dúvida, médico e padre serão o centro narrativo desta comédia.
Sim, este início de história de facto pertence a uma comédia. Aliás, a uma comédia mesmo hilariante. Se bem que algumas personagens, sobretudo aquelas mais laterais, por vezes podem parecer caricaturas simplórias, na realidade desenvolvem papéis sempre interessantes e fora do previsível.
A maior novidade da estreia cómica deste realizador italiano é que o tema religioso, central no desenrolar-se da história, é tratado com enorme respeito, sem demasiados clichés e sem as habituais quedas na ordinarice ou na palhaçada. Mesmo na maior comicidade, há um fundo muito sério nesta história que, além de produzir algumas gargalhadas, deixa alguns tópicos e imagens para a nossa reflexão.

25/01/2016

O zoo de vidro, de Tennessee Williams

em Doce Pássaro de Juventude e outras peças
Lisboa: Relógio d'Água, 2015, pp. 394, 18,00€
As obras do dramaturgo Tennessee Williams estão atravessadas pela contínua busca desse «qualquer coisa de inesperado pelo que vivemos e que sempre se atrasa», segundo as suas próprias palavras. Em todas elas encontram-se personagens opostos que, duma ou outra forma, tentam encontrar um significado para as suas miseráveis vidas.
O zoo de vidro, o primeiro dos seus dramas de sucesso, faz referência ao frágil mundo da ilusão em que Laura Wingfield se refugia: por ser tímida e ligeiramente coxa, tornou-se incapaz de enfrentar a realidade. Do mesmo modo, as restantes personagens desta peça procuram num passado glorioso ou no cinema uma possibilidade de fugir ao asfixiante ambiente familiar. O encanto dos protagonistas está no facto de que nenhum deles se contenta com o estado presente, mas procuram, projetam, esperam, ao terem já visto que a tentativa de fugir é naturalmente um falhanço.
Trata-se dum teatro cheio de diálogos vivos, que se movem constantemente entre o plano realista e o plano simbólico. O narrador confessa ter «debilidade pelos símbolos», pelo que se encontram muitos elementos que remetem para uma realidade além da textual, muitas vezes enfatizados por mensagens que aparecem num écran no palco e que oferecem chaves de compreensão do que está a acontecer.
A alternativa a este falso mundo de ilusões é sugerida pela personagem de Jim O'Connor, um católico irlandês que acredita no sistema capitalista. Ele aceita jantar na casa dos Wingfield e, enquanto que essa família pretende fazer dele o pretendente da Laura, por sua vez Jim oferece a possibilidade de que todos possam enfrentar a realidade. Na ambiguidade que sempre prevalece no teatro de Williams, Jim conseguirá que Laura saia do seu mundo de sonhos e se abra uma porta à esperança.

12/01/2016

Sophia de Mello Breyner Andresen, Contos exemplares


Porto: Porto Editora, 2014, 164 pp., 12,00€
Mais do que uma narradora, Sophia de Mello Breyner é uma poetisa que escreveu contos. Ao mesmo tempo, as suas narrações são tão profundas que o Prefácio do Bispo António Ferreira Gomes chega a afirmar que nelas «há mais conteúdo cristão que nas de Cervantes ou Camões», e que a sua comunicabilidade essencial e interioridade riquíssima, feita de comunhão humana, superam os maiores: Hölderlin, Rilke, Shelley ou Pessoa.
Aquela que se pode aclamar como a maior poetisa portuguesa do século XX não poderá ser, portanto, reduzida a simples narradora de contos infantis, etérea poetisa do absoluto ou revolucionária socialista anti-regime. A sua riqueza poética e simbólica faz com que os seus Contos sejam verdadeiramente «exemplares», no sentido que os clássicos davam a esta palavra: exemplos ou paradigmas de experiências humanas, concretas e universais.
Como na grande literatura clássica, estes Contos exemplares procuram a nobreza de cada experiência e falam a partir de uma consciência existencialmente comprometida. Em muitos deles, a ironia chega a ser mordaz, na crítica a quem só olha para as aparências e se julga protegido no conforto das suas certezas. Mas, em última instância, prevalece uma simpatia humana, que reconhece o bem da realidade que existe e do outro que me ajuda a vê-la.

[*com um agradecimento a Rosarinho Lupi-Bello]

04/01/2016

A juventude (Youth)



Paolo Sorrentino, 2015


Quando o jovem actor Jimmy aparece caraterizado de Hitler, depois duma longa preparação para aquele que será o seu novo papel, confessa que por fim irá desistir. Porque? Porque esteve a observar as pessoas à sua volta e escolheu não deter-se no terror, mas falar do desejo. «Cada um de vocês abre os meus olhos» e, por diferente ou estranho que seja o desejo de cada um, é isso que nos torna seres humanos. A seguir, vemos um plano de um monje budista a levitar, numa clara referência transcendente.
Assim é o cinema de Sorrentino: escolhe falar do desejo, das «emoções», segundo as palavras de outra das personagens. Com estupenda simpatia e ironia, com realismo e graça, às vezes com excessiva nudez e crueza, a sua câmara filma de forma espectacular aquilo que é humano e nos constitui.
O tema principal é uma reflexão sobre a essência da juventude, desde o ponto de vista paradoxal de um par de amigos idosos que passam férias num complexo nos Alpes. Mais do que uma definição, procuram-se imagens, contrastes, várias faces da mesma experiência, novas luzes que iluminam aquilo que todos já vivemos duma ou outra maneira.
Mais uma grande beleza.

07/01/2015

A inocência do Padre Brown, de G. K. Chesterton

Lisboa: Aletheia, 2011, pp. 314, 15,30€
A figura dum sacerdote-detective, à moda de Sherlock Holmes ou Hercules Poirot, só pode ter sido imaginada por uma personalidade de génio como o convertido Chesterton. Em contos de poucas páginas, encontramos a tradicional apresentação dum crime, as tentativas de resolução e a desarmante sagacidade do detective que apanha o criminoso; só que, neste caso, o tal detective não é um polícia nem um investigador, mas um simples e aparentemente rude padre católico.
O Autor conta que, ao encontrar e conhecer a Igreja Católica, estava certamente à espera de que lhe falassem da moral e do bem, mas ficou espantado porque os católicos também falavam do mal, com igual profundidade e conhecimento de causa. Assim, quando criou a figura do detective Padre Brown, fez com que o seu método de investigação fosse baseado na sua experiência do mal: um padre que confessa, diz a personagem, passa muito tempo a ouvir pecados, e por isso tem facilidade em identificar-se com o mal que os homens fazem.
De facto, esta é a grande novidade de Chesterton nesta colecção de contos (que é a primeira de 5 séries, com um total de 50 histórias independentes): ao contrário dos métodos racionalistas e dedutivos que Conan Doyle aplicou para Sherlock Holmes, ou que ainda antes Allan Poe prefigurou no detective Dupin dos Assassínios da Rua Morgue, Chesterton usa a observação, o realismo e a experiência directa para que o seu Padre Brown desmascare o mal, sempre tão misturado com o bem...

29/11/2014

Boyhood: momentos duma vida (Boyhood)

Richard Linklater, 2014
«Mostrar a vida», as coisas pequenas do dia-a-dia, os eventos normais, sem contar muitas histórias, é a base deste avassalador filme de Linklater. Narra 12 anos na vida dum rapaz, Mason, filmados ao longo desse mesmo período de tempo, e permite ver nos seus 166 minutos, de facto, a densidade da vida.
Desde a primeira das 143 cenas, ficamos a simpatizar com o seu protagonista. Depois com a mãe dele e com o pai, que constituem um núcleo de relacionamentos que o introduzem na vida. Espanta a positividade com que estas personagens, para nada idealizadas, enfrentam as situações pelas quais qualquer criança e adolescente já passou, e qualquer pai ou mãe viu no crescimento dos mais novos.
O ritmo narrativo é mantido de forma espectacular pelas imprevisíveis mudanças de cena, pelo inexorável decorrer do tempo e do crescimento, mesmo visual, das personagens e de Mason em particular. Assim, nesta impressionante experiência cinematográfica, consegue-se dar todo o espaço à «normalidade», à beleza do quotidiano captado com uma máquina fotográfica, às músicas que descrevem estados de ânimo, às grandes perguntas sobre o sentido do nosso estarmos aqui, ao «presente que nos agarra».
Sem mistificações, é uma experiência do mais transcendente.

31/01/2014

Rush – Duelo de rivais (Rush)

Ron Howard, 2013
Numa das cenas finais de Rush, assistimos ao habitual desafio entre os heróis da história e surpreendemo-nos a querer que nenhum deles perca o duelo. É então que nos apercebemos que estamos perante uma narrativa diferente: deixando atrás a fácil oposição bons-maus, aqui reconhecemos pessoas reais, seres humanos com virtudes e defeitos, apresentados com uma genuína simpatia.
A carga emotiva desta viril encenação, ajudada por uma realização e produção brilhantes, é enorme. Se bem que vejamos algumas corridas e muitos cenários de oficinas e circuitos de fórmula um, na realidade o centro dramático são as alegrias e dificuldades nas vidas dos dois pilotas (Nikki Lauda e James Hunt). Vidas por vezes contrapostas, rivais, sempre respeitosas, por momentos até aliadas, numa conclusão que mostra como há sempre alguma coisa a aprender, mesmo do nosso pior inimigo.

18/01/2014

O ofício de viver, de Cesare Pavese

Lisboa: Relógio d'Água, 2004, pp. 400, 19,90€
Ao usar o adjectivo «erudito» aplicado a um Autor, por vezes é hoje revestido duma conotação negativa, como se o vasto saber fosse uma espécie de má-criação para um leitor que se desclassifica como medíocre.
Eruditos e geniais são certamente os diários do romancista e poeta italiano Pavese recolhidos nesta obra. Percorrendo os últimos 15 anos da sua vida, entre 1935 e 1950, esta figura chave da literatura europeia do século XX reflecte sobre a criação literária, o sofrimento, as suas leituras, a procura de sentido, o peso das palavras, entre outros muitos temas. Abordam-se esses temas de forma muito fragmentária, dado que as entradas de diário são geralmente breves, mas alguns deles repetem-se e reaparecem com renovada maturidade.

A forma do diário permite percorrer a vida pública deste escritor, ao passo que se entra na sua intimidade. Vai abrindo-nos o olhar à realidade que observa e descreve, que diz ser muito maior do que ele, e confessa que o faz tendo já perdido a batalha, porque «nunca se viu que uma poesia mudasse as coisas». Com momentos de profundidade insólita, nas suas reflexões laicas e sem fé à procura de si mesmo, é uma leitura que não deixará indiferente a ninguém.


05/01/2014

A vida secreta de Walter Mitty (The secret life of Walter Mitty)

Ben Stiller, 2013
Os títulos de crédito duram mais de cinco minutos, depois de duas horas de filme; mas a sua estética, a música que os acompanha, a beleza que preencheu os olhos do espectador e as perguntas que lhe ficam no fim da história tornam-nos quase breves. Até quem veio sem grandes expectativas, não pode deixar de ficar espantado por uma originalidade mais do que interessante em qualquer um dos aspectos mencionados.
De difícil classificação, não é de admirar que a crítica se tenha dividido perante a quinta realização de Ben Stiller. Sempre num tom cómico e descontraído, o realizador americano abandona desta vez o registo superficial das divertidas Zoolander ou Tempestade tropical, para nos levar a uma procura da identidade dum homem «cinzento como um pedaço de papel», que por vezes se perde numa realidade paralela.
Porém, a vida confronta a personagem de Walter Mitty com as suas dificuldades (o fecho da empresa onde trabalha, a perda dum valioso objecto, a sua timidez perante um amor que nasce) e ele, cada vez mais realista e menos sonhador, embarca-se numa série de aventuras para alcançar um ideal superior, que entrevê desde o princípio da sua «vida secreta». Paisagens (e fotografia) maravilhosas na Islândia, uma viagem impossível de helicóptero, idas e regressos a casa, tornam fascinante o percurso deste sonhador, com o qual não só é fácil criar empatia, como até identificarmo-nos.